domingo, 15 de noviembre de 2009

A individuação como problema de sociologia da literatura


A individuação como problema de sociologia da literatura


por

Jacob (J.) Lumier

O termo “individuação” foi adotado nas teorias metapsicológicas por influência de Schopenhauer [1], que fala do principium individuationis. Em geral, o conceito é utilizado para denotar o processo pelo qual uma pessoa se torna ‘in-dividual’, afirma uma unidade indivisível ou um ‘todo’.

Em sociologia, o principium individuationis tornou-se objeto de estudo depois que, nos anos de 1920, os seguidores do culturalismo abstrato do filósofo Heinrich Rickert – dentre os quais Max Weber – insistiram no indivíduo e no individual como foco das significações, e estudaram o mundo histórico como essencialmente singular, tomando-o como cultura histórica que se individualiza.

Deste ponto de vista, a afirmação do indivíduo como um todo, verificando-se no mundo histórico, ultrapassa os limites psicológicos dos estudos sobre desenvolvimento da personalidade, e surge como o princípio de individuação da cultura histórica.

Será esse princípio que a sociologia verificará como problemático na literatura, notadamente no gênero romanesco.

Sem embargo, em sua postura metodológica e visando compreender, ajuizar e classificar as obras com valor estético, o sociólogo toma o fato literário como não-reduzido às significações, sejam estas culturais, sociais, psicológicas.

A significação é frequentemente considerada como atributo de uma visão de mundo mais ou menos coerente. Se fosse tomada como único critério estético diminuiria os escritores, tornando-os insignificantes em face dos pensadores.

Por contra, em seu ponto de partida, o sociólogo toma o objeto literário como configuração de valor, na qual não é somente certo número de idéias que se encontram dotadas da máxima eficácia estética, mas também certo número de emoções.

Desta forma, ao se orientar para a apreensão do desejado em literatura, o sociólogo assume um ponto de vista interior ao fato literário, trazendo para o campo sociológico as experiências individuais indiretas e variadas de todos os subterfúgios, achados, disfarces, fugas, simulações, etc.

Isto não quer dizer que os ensinamentos sejam desprezados em favor da fantasia. Se as experiências literárias podem aportar alguma "lição", importa que os indivíduos reconhecem tais experiências indiretas porque, em sua engenhosidade, delas se ocupam.

Em relação à sociologia da literatura do século XX, há um aprofundamento no individualismo para focar-se na própria individuation burguesa, na possibilidade mesma do que constitui ou diferencia um indivíduo de outro indivíduo em contexto de alienação.

Admite-se que a objetivação do humano nas estruturas correlaciona-se ao surgimento da subjetividade, como aspiração aos valores que, entretanto, resta em estado de aspiração, compreendendo uma cultura difusa, vaga, sem pertença, uma cultura que não se individualiza.

Daí a simples subjetividade como pensamento letargado, perplexo, chegando à ataraxia, a qual não deve ser confundida às alienações mentais subjetivas, esquizofrenias ou delírios patogênicos em face da realidade, frequentemente provocados no envolvimento do indivíduo em alternativas irreconciliáveis para o sentimento de felicidade.

Embora haja domínio conexo entre a estética sociológica e as teorias metapsicológicas, o alcance crítico da sociologia literária sobressai.

Tanto que, ao pesquisar a composição romanesca em seu contexto de alienação, o sociólogo observa que a busca da individuação é colocada diante da coisificação não somente como (a) condição da ruptura libertadora – portanto condição negativa –, mas (b) como forma positiva, isto é, forma que torna objetivo o trauma subjetivo (torna objetiva a consciência desprovida de auto-afirmação).

Tal o sentido positivo da coisificação – formulado acima no "item b" – para a busca da individuação em literatura romanesca: forma do caráter de mercadoria assumido pela relação entre os homens.

Daí a idealização de um retorno à memória da infância, que fixa um tempo perdido, quase uma tendência à introspecção, ao fechamento, de que nem Proust nem mesmo o freudismo escaparam.

Tanto que T. W. Adorno equiparará na arte de avant-garde a caída da consciência [2], uma vez desprovida de auto-afirmação em um conteúdo particular, à caída do sujeito individual como engenho[3], lembrando a imagem de mônada leibntziana, fechada, sem janelas, mas que, na perspectiva artística, deve ser referida ao foco irradiador da narrativa de Kafka, por exemplo, ou, no dizer mesmo de Adorno: “a mônada sem janelas prova ser lanterna mágica, mãe de todas as imagens, como em Proust e em Joyce[4].

Individuação e Dialética

Seja como for, a sociologia da literatura e do gênero romanesco será estudada neste nosso ensaio à luz da promessa humanista da civilização, que afirma o humano como incluindo em si, juntamente com a contradição da coisificação, também a coisificação mesma.

Entendemos que, do ponto de vista sociológico em geral, a individuação pode ser alcançada sim, para-além de toda a mistificação espiritualista da introspecção, mediante a reflexão com dialética.

Em teoria sociológica, o materialismo e o espiritualismo não passam de abstrações do esforço humano. A consciência faz parte das forças produtivas em sentido lato e, nas correlações funcionais, desempenha um papel constitutivo dos próprios quadros sociais, seja como linguagem, seja pela intervenção do conhecimento, seja ainda como direito espontâneo.

Como se sabe, esses quadros sociais são chamados por Marx de “modos de ação comum”, ou modos de colaboração, ou ainda relações sociais, nas quais, além da imanência recíproca do individual e do coletivo, se incluem as manifestações da sociabilidade, os agrupamentos particulares, as classes sociais e as sociedades globais.

O significativo aqui é que esses quadros sociais exercem um domínio, um envolvimento sobre a produção material e espiritual que se manifesta no seu seio, domínio esse que por sua vez é exatamente o que se prova nas correlações funcionais.

Quanto às ideologias, ficam excluídas das forças coletivas ou produtivas por representarem uma “mistificação”: a alienação do conhecimento desrealizado e perdido nas projeções para fora, que inclui as “falsas representações coletivas”, em que os homens e as suas condições surgem invertidos, como numa câmara fotográfica [5].

Como nota Georges Gurvitch [6], na dialética dos níveis de realidade social os quadros sociais e a consciência real são produtos das forças produtivas strictu sensus – isto é, podem ficar objetivados – mas, sob outro aspecto, são igualmente os seus produtores, e assim, por essa reciprocidade, se afirmam como elementos reais da vida social.

Tal é o ponto de partida da dialética sem a qual não poderá passar a reflexão de que depende nossa afirmação e individuação humana [7].

***


[1] A. Schopenhauer 1788 —1860, filósofo.

[2] Caída da consciência no sentido de redução da função representacional.

[3] Quer dizer, com a arte de Kafka trata-se de subtrair a análise do psiquismo, não para ficar junto ao sujeito da Psicologia, mas para confrontar o especificamente psicológico notado na concepção que “faz derivar o indivíduo a partir de impulsos amorfos e difusos”, isto é faz derivar o Eu do Id (Isto), convertendo-o de entidade substancial, de ser em vigência do anímico, em “mero princípio de organização de impulsos somáticos”, em engenho (astúcia, destreza, ardil).

[4]Ver: Adorno, T.W.: “Prismas”, tradução Manuel Sacristán, Barcelona, Arial, 1962.

[5] Segundo Gurvitch, configurando um fenômeno de psicologia coletiva tipificado na mentalidade dos economistas estudados por Karl Marx, a consciência burguesa é uma consciência mistificada ou ideológica porque está impregnada pelas representações características de um período particular da sociedade, em que a primazia cabe às forças materiais. Ver Gurvitch, Georges (1894-1965): “A Vocação Actual da Sociologia –vol.II: antecedentes e perspectivas”, tradução da 3ªedição francesa de 1968 por Orlando Daniel, Lisboa, Cosmos, 1986, 567 pp. (1ªedição em francês: Paris, PUF, 1957): pág. 347 sq.

[6] Gurvitch, Georges: “A Vocação Actual da Sociologia – vol.II, op.cit.págs.294/5.

[7] Em filosofia da ciência, a individuação implica um método para atingir o real. Na individuação mecânica, por exemplo, cada objeto individual, no caso cada sólido (objeto de lei mecânica), sendo concebido como entidade separada e distinta, era conhecido por sua localização no espaço e no tempo. Por sua vez, os objetos de uma lei estatística de que trata a epistemologia da microfísica podem ser dados por um método de individuação no qual as qualidades individuais se definem por integração no conjunto, de tal sorte que um membro do grupo (de átomos, neste caso) é tão apropriado quanto qualquer outro para satisfazer certas condições que os distinguem dos objetos exteriores. Ver Bachelard, Gaston: “O Novo Espírito Científico”, São Paulo, editora Abril, 1974, coleção “Os Pensadores”, vol.XXXVIII, pp.247 a 338 (1ª edição em Francês, 1935).




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